A discussão a respeito da desestatização das empresas públicas e sociedades de economia mista do âmbito federal, em evidência desde o início da gestão do atual Presidente da República, ganhou novo impulso com a inclusão da Empresa Brasil de Comunicação – EBC no Programa de Nacional de Desestatização – PND, por meio do Decreto n. 10.669, de 08 de abril de 2021.
A questão da desestatização gera grande debate jurídico que, há muito, tenta equacionar a natureza híbrida dessas entidades.
Em relação à EBC, uma primeira reflexão que se faz relevante se refere ao equivocado fundamento de que se trata de uma empresa pública que não produz resultado financeiro positivo, mas sim prejuízos.
A criação da EBC, autorizada pelo art. 5º da Lei n. 11.652/2008, tem por finalidade a prestação dos serviços de radiofusão pública, em convergência com o princípio da complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal, nos termos do art. 223 da Constituição Federal.
Responsável pela implantação e operação de emissoras e exploração de radiofusão pública sonora e de sons e imagens do Governo Federal, a EBC é conhecida pela veiculação do programa “A Voz do Brasil”, além de produzir e difundir programação informativa, educativa, artística, cultural, cientifica, de cidadania e de recreação; devendo também distribuir a publicidade legal dos órgãos e entidades da administração federal.
A EBC deve ainda garantir regionalização dos conteúdos veiculados em sua programação.
É, portanto, o seu capital social e não econômico que deve ser mensurado para se considerar a sua desestatização. Notadamente, numa perspectiva financeira, a sua finalidade social não permite a geração de lucro financeiro, razão pela qual depende do custeio proveniente da União Federal. Dai porque se revela deletério os efeitos da sua privatização sob uma perspectiva do interesse público.
Ademais, entendemos não ser apropriada a discussão da privatização – ou desestatização – da EBC, ou mesmo de outras empresas públicas, que se divorcie do “querer” do constituinte originário que estabeleceu no art. 173 da Constituição Federal a exploração direta de atividade econômica pelo Estado quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou relevante interesse coletivo.
São, portanto, estes dois elementos que, em sua essência, justificam a constituição e funcionamento de entidades estatais que explorem atividade econômica.
Estes elementos, em regra, conferem ao Estado uma poderosa ferramenta de garantia da exploração de atividade econômica ao Estado com o intuito de assegurar a segurança nacional – quando aquela atividade possui relação direta com a segurança da nação e que, portanto, a intervenção do capital privado ou estrangeiro possam ameaçar a soberania nacional – ou assegurar relevante interesse coletivo, isto é, a exploração da atividade econômica proporcione benefício à uma coletividade, de modo que, sem a intervenção estatal naquela atividade – por ausência de interesse particular, ou por ausência de particular capaz de explorar aquela atividade – haveria uma carência e, portanto, uma necessidade ou interesse coletivo reprimido.
Estes preceitos, portanto, devem ser prontamente considerados no que diz respeito a qualquer discussão em torno da desestatização de empresas públicas.
Mais uma vez, a lucratividade não pode ser levada em consideração isoladamente sem que haja cotejo adequado com os imperativos constitucionais de segurança nacional e relevante interesse coletivo. Isto porque há uma considerável quantidade de estatais que não têm como finalidade precípua o lucro.
Naturalmente que a capacidade de serem lucrativas torna evidentemente mais sustentável a manutenção e o custeio das estatais, demandando menos subsídios do erário e, portanto, onerando menos ainda o contribuinte. No entanto, esta nem sempre é uma meta atingível, especialmente se considerarmos o tipo de atividade econômica explorada pela estatal e a sua finalidade.
Esta é uma realidade facilmente verificada na maioria das estatais: pouca ou nenhuma capacidade de gerar lucro, mas uma alta capacidade de proporcionar um ganho social que, naturalmente, interfere nos resultados da economia nacional, atingindo seus objetivos à luz da Constituição.
Outro aspecto sensível e que deve ser enfrentado pelo debate da desestatização é a situação dos quase 2.000 empregados da EBC.
A submissão ao regramento da contratação por meio de concurso público garante aos trabalhadores das estatais uma condição que, sabidamente, proporciona mais segurança no que diz respeito às demissões.
Não há, é verdade, uma estabilidade como aquela garantida aos servidores públicos efetivos, mas já é assente a compreensão de que pelo fato de serem admitidos por concurso público, os empregados públicos não podem ser demitidos sem justa causa, como na iniciativa privada.
Em recente julgamento, RE n. 589.998, o STF reafirmou a necessidade de motivação da dispensa dos empregados dos Correios. Apesar da decisão limitar-se aos empregados dos Correios, fato é que a motivação da dispensa é um elo que guarda a devida coerência com a forma de contratação desses mesmos empregados. A decisão não inaugurou nova tese na Suprema Corte, que já vinha sinalizando em decisões anteriores o mesmo posicionamento.
No entanto, o que dizer a respeito dos empregados admitidos por meio de concurso público a partir do momento em que a empresa ou a sociedade de economia mista que os emprega é desestatizada?
A desestatização da entidade provoca, naturalmente, a inaplicabilidade dos regramentos de caráter público anteriormente a ela aplicáveis. Nestes termos, a motivação da dispensa, antes garantida, se torna insustentável e incompatível, ainda que por concurso público tenha sido admitido o empregado.
Por uma questão de coerência com o modo de admissão desses empregados, ainda sob o regime estatal, entendemos que a demissão após a desestatização deveria ser submetida aos mesmos ditames, sob pena de violação à segurança jurídica especialmente para os empregados que se veem diante de novas regras com o jogo em curso, isto é, com a vigência do contrato de trabalho em curso.
Se a mudança do regime jurídico não tem o condão de romper o contrato de trabalho, naturalmente também não pode vulnera-lo, ignorando o regramento aplicável à época da contratação.
Contudo, esta não é uma posição majoritária e nem predominante perante o Judiciário. A compreensão é de que a migração para o regime privado afasta a motivação da dispensa, ignorando o modelo de contratação e forma como se iniciou o contrato de trabalho.
Neste ponto, se faz necessária a ativa participação das entidades sindicais representativas dos trabalhadores para garantir que o Estado, na elaboração do processo de desestatização, implemente medidas que exijam do particular garantias adequadas de manutenção do pleno empregado, especialmente porque também devemos considerar que o emprego é um valor social agregado às estatais.
Curiosamente, num momento em que o pleno emprego fora achacado pela pandemia da COVID-19, após o duro golpe sofrido pelas entidades sindicais quanto ao seu custeio, falar em desestatização que ameace postos de trabalho se divorcia ainda mais do interesse social e mesmo econômico (Fonte: Estadão).
Rafael Rodrigues de Oliveira, especialista em Direito Constitucional e em Direito Sindical, advogado sócio da Rodrigues Pinheiro Advocacia.