Comportando uma série de inovações constitucionais a Reforma Administrativa, proposta pela PEC n. 32/2020, foi encaminhada pelo Poder Executivo Federal ao Congresso Nacional no dia 03/09/2020, fundando-se na desburocratização da máquina estatal e na maior eficiência nos serviços prestados pelo Estado[1].
Dentre as alterações constitucionais constantes na PEC n. 32/2020 tem-se a alteração do artigo 39[2] da Constituição Federal, que dispõe sobre a instituição do Regime Jurídico Único (RJU) para os servidores públicos no âmbito da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, de modo a extinguir o RJU e viabilizar a adoção de regimes jurídicos diversos para servidores da administração pública direta, das autarquias e fundações públicas.
De forma contrária ao texto constitucional originário, a nova redação sugerida pela PEC n. 32/2020 atribui à Lei Complementar a competência de dispor acerca de gestão de pessoal, política remuneratória, jornada de trabalho, progressão funcional e ocupação de cargos de liderança, afastando, no entanto, a garantia constitucional dos servidores públicos de gozarem de regime jurídico universal e isonômico no âmbito dos entes estatais aos quais se vinculam.
Para assimilar a magnitude das implicações acerca da extinção da garantia constitucional do Regime Jurídico Único para servidores públicos é indispensável percorrer o contexto histórico que consolidou a garantia constitucional em comento, considerando que a positivação do RJU foi fruto de um longo processo de uniformização e reorganização estatal em conjunto com a observação de pautas sindicais de diversas categorias de servidores públicos afetados pela instabilidade jurídica do serviço público à época.
O primeiro texto legal brasileiro que regulou um regime jurídico específico e sistematizado para os servidores públicos civis foi o Decreto-lei n. 1.713, de 28.10.1939, denominado Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União.
No entanto, em paralelo ao regime jurídico pioneiro, coexistiam inúmeras situações jurídicas específicas que, por vezes, eram precárias, como os denominados servidores não estatutários submetidos a normas próprias que se sucediam ao longo de anos de alterações legislativas, ocasiões em que muitos se associavam a funções públicas, sem cargos regulares correspondentes.[3]
Posteriormente houve a aprovação da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, por meio do Decreto-lei n. 5.452/43, compilando-se a normativa aplicável aos trabalhadores da iniciativa privada, incorrendo na exclusão expressa dos servidores públicos dos direitos assegurados na CLT.[4]
A carência de amparo jurídico para os servidores públicos culminou na aprovação de sucessivos textos legais que se esforçavam em aproximar o regramento jurídico dos servidores públicos das disposições da CLT, conforme se verifica na Lei n. 1.711/1952 e na Lei n. 1.890/1953, substituídas pelo Decreto-lei n. 200/1967 que previa a contratação na Administração Pública regida pela legislação trabalhista e Lei n. 6.185/74 que formalizou a preferência estatal pela contração nos termos celetistas e não mais estatutário.
Esta instabilidade jurídica reforçou e arraigou o tratamento desigual entre os servidores públicos nas esferas Federal, Estadual, Distrital e Municipal, ou seja, de maneira totalmente desordenada haviam servidores que trabalhavam na mesma repartição, desempenhando as mesmas funções e recebiam tratamento jurídico diferente, uns regidos pela CLT, outros regidos por estatutos próprios, com jornadas de trabalho e remunerações discrepantes.
Este contexto jurídico representava não apenas uma ofensa aos direitos individuais dos servidores públicos, como também interferia na prestação de serviços à sociedade de forma ética e responsável, considerando que o servidor público é o braço estatal no atendimento do interesse coletivo.
Como consequência disso a disposição de direitos para determinados servidores públicos de forma não isonômica afetava diretamente o interesse coletivo no manuseio de serviços essenciais de competência estatal.
E diante deste contexto, a promulgação da Constituição Federal de 1988 com a previsão de regime jurídico único para os servidores públicos positivou a obrigação estatal de dispor de maneira uniforme sobre os direitos e obrigações dos servidores.
A referida previsão constitucional, como já explanado, consolidou o progresso no âmbito organizacional da Administração Pública, tanto em sua forma mais específica, ou seja, consolidando o tratamento isonômico entre servidores, bem como em sua forma mais generalista, ou seja, atendo o interesse coletivo com maior formalidade e eficiência na prestação do serviço público.
A instituição do RJU por meio de mandamento constitucional amparava-se na regra da simetria constitucional, ou seja, o regime deveria se formalizar no âmbito Federal e reflexamente os Estados, Distrito Federal e Municípios deveriam se ordenar para instituir regimes jurídicos únicos nas suas esferas de competência.
Neste sentido, atendendo a determinação constitucional, no âmbito federal, foi sancionada a Lei n. 8.112/1990, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais, sendo a lei basilar na qual são definidos os direitos, deveres garantias, vantagens, proibições e penalidades que devem regular o relacionamento entre Administração Pública e servidores públicos federais.
A Lei n. 8.112/1990 é a formalização do relacionamento entre entidade pública e servidor público, sendo acima de tudo a garantia de uma convivência mais justa e igualitária entre servidores públicos e entre a própria Administração Pública, sendo esta a legislação modelo fundamental para reprodução de outros regimes jurídicos únicos nas esferas subjacentes dos entes federados brasileiros.
Assim a Reforma Administrativa disposta na PEC n. 32/2020 propõe o esvaziamento do regime estatutário disposto na Lei n. 8.112/1990 designando que seja elaborada nova lei complementar para dispor sobre direitos, deveres garantias, vantagens, proibições e penalidades que devem regular o regime jurídico dos servidores públicos federais.
E para além disso, a Reforma Administrativa propõe o retrocesso de uma garantia constitucional consolidada ao longo de 80 anos de sucessivas inovações legislativas que culminou com a positivação do artigo 39 da Constituição Federa de 1988, o tratamento isonômico para servidores públicos.
A substituição do regime jurídico único por emenda constitucional de eficácia limitada, ou seja, a substituição pela promessa de elaboração de lei posterior que regule o regime jurídico dos servidores, instaura um cenário de instabilidade e insegurança jurídica.
De modo que os direitos, deveres, jornada de trabalho e disposições remuneratórias das carreiras públicas estarão a mercê do contexto político atual, facultando ao Poder Executivo, por meio de Lei Complementar, a instauração de diversos regimes jurídicos para as mais variadas carreiras do serviço público.
Significa dizer, em melhores palavras, que servidores do mesmo ente estatal ou da mesma esfera federal poderão ser submetidos a regulamentos diferentes, seja por lei com disposições próprias à carreira, seja pela aplicação subsidiária do regime celetista, a depender de elaboração de lei posterior que regule as carreiras públicas.
Esta flexibilização do regime jurídico dos servidores públicos é atribuída à desburocratização estatal e a conferência de maior eficiência nas repartições públicas, no entanto, o grande questionamento que é posto é: até que ponto a degradação de garantias constitucionais como o tratamento isonômico aos servidores públicos confere, de fato, maior eficiência à máquina estatal?
O servidor público é o agente na atuação literal da força estatal, ou seja, é por meio dele que o Estado presta o serviço público nas mais diversas esferas em que lhe é atribuída competência, sendo assim, o servidor público atua no interesse da coletividade, conforme ratifica FRITZ FLEINER:
“Chamamos serviço público ao conjunto de pessoas e meios que são constituídos tecnicamente em uma unidade e destinados a servir permanentemente a um fim público específico.” (Manual de direito administrativo, t. II, p. 1.043)
Assim a degradação de garantias essenciais do servidor público é a degradação da segurança e amparo jurídico daquele que exerce atividades essenciais para a coletividade, ou seja, acarreta a falha no corpo estatal em si, tornando carente de respaldo jurídico aquele que, por vezes, na atribuição da sua função pública, executará a força fiscalizatória do Estado e necessitará do gozo de garantias constitucionais para não sofrer retaliações.
Por esta razão o tratamento isonômico de direitos e deveres do servidor não desempenha uma satisfação pessoal para cada servidor público, na realidade confere o formalismo necessário para a máquina estatal, tanto na garantia de direitos, como na exigência de deveres, tornando a relação entre servidor e Administração Pública institucional, ou seja, ao contrário do que ocorre nas relações privadas, não há negociações contratuais, mas a mera imposição de normas comuns a todos os servidores.
Por exemplo, atualmente um servidor público federal que figura como parte em um processo administrativo disciplinar terá assegurado o trato formal ao seu processo, conforme disposto na Lei n. 8.112/90, assim independente de qual carreira o mesmo pertença, a condução de seu processo será garantida de forma igualitária, por meio do regime jurídico único vigente.
Todavia, com a possiblidade de aprovação do texto da PEC n. 32/2020, haverá a possibilidade de tratos formais distintos para servidores de uma mesma esfera estatal, diante de um mesmo contexto que ensejaria um processo administrativo.
O que se tem, na realidade, é a marginalização de garantias e direitos constitucionais essenciais à prestação do serviço público de forma ética e responsável, de modo a atender ao interesse social e coletivo.
Tornando a degradação destas garantias, sob o pretexto de maior eficiência estatal, um verdadeiro contrassenso em razão de todo o contexto jurídico já exposto e ainda revelando a fragilidade desta justificava ao se considerar que já é assegurado ao Poder Executivo a liberalidade organizacional da administração pública federal, conforme as competências listadas no artigo 84 da Constituição Federal[5], conferida também aos poderes executivos estaduais, distritais e municipais, conforme a regra da simetria constitucional já esclarecida.
Verifica-se, portanto, que a reorganização estatal para elaboração de novos planos de cargos e trabalho não implica na extinção do regime de garantias, direitos e deveres único para todos os servidores, revelando assim que a extinção do RJU não implicará em maior eficiência estatal, mas sim acarretará num recuo no formalismo, na ética e na responsabilidade do serviço público entregue a população, ocasionado pela insegurança jurídica instaurada pela vigência de diversas normas desiguais regulamentadoras de serviços públicos da mesma esfera.
Roberta Nayara P. Alexandre
[1] “A proposta foi elaborada para viabilizar a prestação de serviço público de qualidade para os cidadãos, especialmente para aqueles que mais precisam, a partir de três grandes orientações: (a) modernizar o Estado, conferindo maior dinamicidade, racionalidade e eficiência à sua atuação; (b) aproximar o serviço público brasileiro da realidade do país; e (c) garantir condições orçamentárias e financeiras para a existência do Estado e para a prestação de serviços públicos de qualidade.” – Justificativa elaboração da PEC, disponível texto na íntegra em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=11CEDE904A216764E75CCFA31970FB6A.proposicoesWebExterno1?codteor=1928147&filename=PEC+32/2020>
[2] Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, no âmbito de sua competência, regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas.
[3] Disponível em: <https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/23/edicao-1/regime-juridico-unico>
[4] Art. 7º Os preceitos constantes da presente Consolidação salvo quando fôr em cada caso, expressamente determinado em contrário, não se aplicam: (…)
c) aos servidores públicos do Estado e das entidades paraestatais;
c) aos funcionários públicos da União, dos Estados e dos Municípios e aos respectivos extranumerários em serviço nas próprias repartições;
[5] Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: VI – dispor, mediante decreto, sobre: a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos;